segunda-feira, setembro 01, 2008
















Sobre ratos e cobras

Andei perdendo um pouco o pé da competição nos últimos dois dias. Os filmes não estavam fáceis e Veneza e o sol me pareceram mais atraentes. Deu tempo, porém, de ver Plastic City, o filme que o chinês Yu Lik-wai dirigiu em São Paulo – e que tem co-produção da Gullane Filmes. A esta altura você já deve ter lido tudo o que há para ser dito sobre ele: que é um longa sem pé nem cabeça sobre a queda de um chefão do contrabando que começa na Liberdade e termina na Amazônia; e que foi vaiado nas duas sessões de imprensa e aplaudido por poucos na sessão oficial. Não há nada que eu possa (ou queira) acrescentar. Prefiro, então, falar do primeiro filme da competição que realmente me interessou (Milk, do turco Semih Kaplanoglu) e do pequeno grande longa que Julio Bressane mostrou hoje, A Erva do Rato. Às cobras e aos ratos, portanto.

Milk (ou Süt, no original) fala de um rapaz que mora com a mãe no interior da Turquia. O garoto está em um momento de transição – ou vira poeta, como quer, ou soldado, ou operário. Há ainda uma outra questão forte que esta passagem à vida adulta implica, que é romper os laços infantis com a mãe e passar a aceitá-la como mulher. É algo que, segundo o diretor, é muito complicado na Turquia – especialmente no interior –, onde certa imagem sagrada da mãe é cultivada. Daí o “leite” do título. Pois bem.

O que faz de Milk um filme interessante, porém, é a forma como esta história é contada. Em princípio, o formalismo de Kaplanoglu me fez lembrar o de Uzak, de seu conterrâneo Nuri Ceylan (que mostrou Three Monkeys em Cannes): sua mise-en-scène é feita de planos fixos e por vezes muito abertos, de composição extremamente rigorosa, em que a ação se desenvolve lentamente (e sutilmente).

Em Uzak, porém, este rigor respondia a certas exigências narrativas, ao mundo estanque que ele tentava representar. No filme de Kaplanoglu este estado catatônico vai, aos poucos, se intensificando e a forma do filme, mais estilizada, parece ir sobrepondo sua narrativa. A partir daí, passei a pensar que, elevado à décima potência, o filme se transformaria em uma obra de Roy Andersson (de Songs from the Second Floor). O filme começa, aliás, com uma cena delirante, em que a mãe passa por um ritual para cuspir uma cobra que está em seu corpo – e que poderia facilmente estar entre as situações absurdas dos filmes do veterano sueco.

Por outro lado, este descolamento da forma – e uma certa exaltação fetichista do processo de construção das imagens – também aproxima o filme de uma obra do mexicano Carlos Reygadas (de Luz Silenciosa), com seus planos estendidos que chamam a atenção para si. O tema de Reygadas é o tempo, mas sua mão pesada por vezes acaba chamando mais atenção para seu método do que para o seu tema. É o risco que Kaplanoglu corre também.

Bem, como fica tudo isso somando? Não sei, para falar a verdade. (Não devo ser o único: na sessão de imprensa não houve aplausos ou vaias, apenas silêncio.) Milk ora aponta para o universo de seus personagens, ora ensaia uma estilização que sugere caminhos alegóricos, ora tenta apontar para o tempo e ora aponta para o próprio umbigo. É um filme que vai precisar ser revisto.

E o Bressane ficou para daqui a pouco.