sexta-feira, janeiro 11, 2008















Vai aí o texto que publiquei ontem no Guia do Estadão, sobre Desejo e Reparação (Atonement, 2007). (E se você não viu o filme, melhor pular direto para ele.) Não li o livro do McEwan – e não sei se o que ele diz sobre ponto de vista na literatura é tão diferente do que já disse um Henry James, por exemplo. Mas se Joe Wright fez uma adaptação fiel, deve ser. Acho que o filme não está falando de um ponto de vista interno às obras, que vale também para o cinema (o clássico, pelo menos). Tenho a impressão de que ele aborda, de um modo mais amplo, a percepção (de um artista em relação ao mundo, de um espectador em relação a um filme, de qualquer um em relação ao próprio passado) e as imagens – ou representações – que podemos produzir a partir dela.

Fiquei incomodado, em princípio, porque achei que ele defendesse, no fundo, a idéia de reconstruímos a realidade, o passado, os filmes e livros à maneira de narrativas clássicas – ou seja, transformamos tudo isso em estruturas fechadas que reorganizam o mundo de forma a não deixar brechas para contradições. Porque apesar de Briony reconstruir a sua primeira versão do estupro (e diferenciar a nós, ao final, fact from fiction), me incomodou que a linguagem do filme ignorasse e existência, por exemplo, do inconsciente – e de seus atos falhos, seus recalques.

Depois me dei conta de que aquilo tudo não é a dramatização da memória de Briony – mas do livro que ela escreveu. E aí o que o filme passou a dizer foi o contrário – que são essas imagens produzidas pelas narrativas clássicas as únicas capazes de construir verdades absolutas. E que elas existem justamente porque, à consciência, produzir imagens assim é uma tarefa impossível. Acho que o tema do filme é o choque entre estes dois “processos de representação”. Poderia ser só uma justificativa ao cinema clássico – mas é mais do que isso. Os planos do filme incorporam de forma apaixonada demais esta linguagem naturalista e narrativa. Além de justificá-la, eles estão ali para defendê-la. (E o filme é lindo, ainda assim.)

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À sua imagem

Há uma cena de Em Paris, o filme de Christophe Honoré em cartaz na cidade, em que o personagem de Romain Duris explica o método de sua ex-mulher para vencer o medo de que ele não a amasse. Ela dizia para si mesma 'ele me ama' repetidas vezes, até que a idéia parecesse a ela algo concreto. Briony Tellis, a protagonista de Desejo e Reparação, teria muito o que conversar com a amante de Duris. Caçula de uma família inglesa rica dos anos 30, a aspirante a escritora começa cedo a tentar organizar o mundo segundo as verdades em que decide acreditar. Aos 13 anos, acusa um empregado (vivido por James McAvoy) de um estupro que não cometeu. O erro leva o rapaz à cadeia e tem conseqüências devastadoras para a vida da irmã (Keira Knightley), que o ama, e para a dela própria. A busca por reparação é o que dita o rumo dos três personagens a partir daí.

É impossível dizer como ela acontece sem estragar a experiência de ver o longa. Basta falar, por ora, que o processo coloca em xeque todas as formas de construção de imagens que conhecemos – seja o cinema, a literatura ou a memória – e a necessidade de produzi-las. Os movimentos de câmera meticulosos e os planos deslumbrantes de Joe Wright encontraram, portanto, uma história que os justificasse – ao contrário do que acontecia em Orgulho e Preconceito, em que eles pareciam maneirismos. É ao livro de Ian McEwan (Reparação) que o estilo do diretor serve melhor. Se Wright e McEwan estão certos, você vai reconstruir todo o filme a seu modo depois de assisti-lo. Mas, acredite, de uma forma ou de outra vai se lembrar do rosto de Vanessa Redgrave nos minutos finais (ou da garota Saoirse Ronan, nos iniciais).