domingo, setembro 03, 2006
















O terror e o filme de terror

Sei que o corro o risco de parecer tão fundamentalista quanto um terrorista islâmico ao dizer isso, mas não tem jeito: eu acho Vôo United 93 (United 93, 2006) um filme imoral. Não duvido do esforço de Paul Greengrass por fidelidade na reconstituição dos fatos e percebo o cuidado por uma certa objetividade ideológica (interna, pelo menos) na construção da narrativa, mas o problema é mais básico: não dá pra se aproveitar do material de um drama real – e recente – pra construir um filme de terror.

O objetivo de um filme desse tipo – provocar espasmos de diversas naturezas no espectador – é incompatível com qualquer finalidade para a qual me pareça justificável se apropriar de um tema como esse. (Não sei qual seria essa finalidade justificável.) Como em um filme de terror qualquer, a sucessão de estímulos que provoca – susto, alívio, medo – esgota-se em si mesma, não permite (ou não pede) que o espectador crie nenhum tipo relação analítica com o seu tema e, portanto, impede que o filme se relacione com a história (real).

Pode-se argumentar que o universo que Greengrass selecionou para ser o centro de sua versão do terror – a ação dos passageiros dentro do avião – já prefigurava essa abordagem, mas acho que a questão é de linguagem. O diretor poderia, se quisesse, ter contado o mesmo pedaço de história de outra forma. Se, em última instância, tivesse narrado os fatos com sua própria voz, sobre uma tela preta, por exemplo, teria feito um filme, apesar de pouco interessante, ao menos moralmente bastante diferente.

Alain Resnais encarou de frente esse dilema formal há mais de meio século quando fez Noite e Neblina, seu filme sobre o Holocausto que está sendo lançado em DVD agora. Ele começou a trabalhar no filme menos de 10 anos depois de a 2ª Guerra acabar – pode-se dizer que ainda um pouco no calor da hora, como Voô United 93. Ao contrário de Greengrass, partiu da idéia de que reconstituir o terror era impossível – e indesejável. O importante era relembrá-lo. Construiu a linguagem de seu filme – uma espécie de documentário poético – sobre essa base moral.

A liguagem não envelheceu: o argentino Daniel Burman atualizou-a, em 2004, em seu curta sobre o atentado à Associação Mútua Israelita Argentina, em Buenos Aires, no filme coletivo Memória de Quem Fica. É claro que não é o único caminho possível – a questão é que é esse ponto de partida moral que falta ao filme de Greengrass.

Não nego, porém, que fosse um filme de ficção qualquer, Vôo United 93 seria bem-sucedido. Já escrevi várias vezes por aqui o quanto me irritam os filmes que usam a câmera na mão e a edição delirantes como recursos "realistas". (Como o próprio Supremacia Bourne, de Greengrass.) Se entendida somente assim, a linguagem de Vôo não seria menos irritante do que a de Neste Mundo, de Winterbottom, por exemplo.

O caso é que aqui dá pra dizer que esses recursos também encontram uma função dramática – pelo menos na segunda metade do filme. Aliados à narração que se recusa a fazer elipses temporais, eles contribuem para moldar um espaço confinado que cai bem ao filme (de terror). Greengrass tem pleno domínio de sua narrativa. A questão é que ele não estava fazendo um filme de ficção qualquer.