sábado, julho 15, 2006















Duas ou três coisas que Haneke sabe de mim

Não consigo pensar em outro cineasta moderno que acredite tanto no poder pedagógico do cinema quanto Michael Haneke. Mas a sua pedagogia não é nem a do cinema clássico – a que apela à "razão do coração" – nem a do cinema moderno – mais afeito a fazer pensar. Ele acha que pode ensinar pelo estômago. (O que me faz imaginar que se Hitchcock tivesse alguma preocupação social ele teria inventado o cinema de Haneke.)

Digo isso pensando em Código Desconhecido (Code Inconnu, 2000) e Caché (2005), os últimos filmes dele que assisti. (E que tanta gente acha vagos ou inconclusos.) Os dois têm teses mais ou menos claras: o primeiro parece dizer, grosso modo, "a origem do conflito é a incompreensão". O segundo, "a origem do conflito é a culpa."

O que Haneke se propõe não é nos fazer compreendê-las (racionalmente) ou senti-las (emocionalmente) – mas nos fazer vivenciá-las como experiência. Daí a necessidade de inventar, no primeiro, uma "mise-en-scène da incompreensão" e, no segundo, uma "mise-en-scène da culpa". (Mais sobre essa história da culpa no blog do Arthur Tuoto, que percebeu isso bem: http://arthur-t.blogspot.com/)

Em Código Desconhecido não basta, portanto, que os personagens sejam incapazes de se compreender. É preciso que a relação entre a câmera e os personagens e a relação entre o espectador e o filme reproduzam as relações entre os personagens.

Haneke limita-se, então, a observá-los em ações mais ou menos desconexas por mais de 60 dos seus 108 minutos. Até ali, aposta na experiência e recusa-se a dar ao espectador material suficiente para que de fato "pense" sobre o filme: arma as cenas em longuíssimos planos-seqüências (como que a exigir atenção e criar uma expectativa por compreensão, somente para frustrá-la em seguida), confunde (como na cena em que o personagem de Juliette Binoche "ensaia" uma cena do filme em que está trabalhando), sonega informação. Enfim, manipula descaradamente o espectador.

E expõe, assim, sua noção de cinema: uma linguagem que serve às teses, mas que só atinge todo seu potencial pedagógico se for devidamente manipulada, pois é uma linguagem que não é compreendida racionalmente. É preciso, portanto, saber tocar nas teclas certas.

Caché me parece uma radicalização dessa idéia. A operação de mimese também é mais sofisticada. Se a sua tese diz, em última instância, que a origem do conflito é a culpa, ela também poderia ser dita de outra forma: "a origem do conflito é o medo e a origem do medo é a culpa." Logo, para fazer os espectadores experimentarem a culpa – pequenos burgueses que são como o personagem de Daniel Auteuil –, basta fazê-los experimentar o medo. Daí a sucessão "inconclusa" de eventos que parecem estar ali para desnortear, causar estranheza – e, por fim, "ensinar".

A pedagogia nesse caso é dupla: Haneke ensina sobre cinema também. O que desencadeia o processo de desequilíbrio (ou de "aprendizado") do personagem de Auteuil são imagens – e elas ora estão no filme assistido pelos personagens, ora estão no filme de Haneke. Ele deixa sua teoria mais clara: se o cinema não deve preocupar-se em apelar ao racional é porque conversa melhor com o inconsciente. E assim como Binoche trabalha em um filme em Código Desconhecido, Auteuil trabalha em uma TV em Caché, oportunidade para desmascarar a manipulação das imagens.

Não vou discordar com quem acha que há algo de enfadonho – ou limitado – nesse "projeto pedagógico". Mas que ninguém acuse Haneke de desonestidade. Se as duas narrativas parecem vagas, é porque o centro do filme não está nelas – e ele não esconde isso: a estrutura é tão calculada e sólida quanto poderia ser.