
Duas ou três coisas que Haneke sabe de mim
Não consigo pensar em outro cineasta moderno que acredite tanto no poder pedagógico do cinema quanto Michael Haneke. Mas a sua pedagogia não é nem a do cinema clássico – a que apela à "razão do coração" – nem a do cinema moderno – mais afeito a fazer pensar. Ele acha que pode ensinar pelo estômago. (O que me faz imaginar que se Hitchcock tivesse alguma preocupação social ele teria inventado o cinema de Haneke.)
Digo isso pensando em Código Desconhecido (Code Inconnu, 2000) e Caché (2005), os últimos filmes dele que assisti. (E que tanta gente acha vagos ou inconclusos.) Os dois têm teses mais ou menos claras: o primeiro parece dizer, grosso modo, "a origem do conflito é a incompreensão". O segundo, "a origem do conflito é a culpa."
O que Haneke se propõe não é nos fazer compreendê-las (racionalmente) ou senti-las (emocionalmente) – mas nos fazer vivenciá-las como experiência. Daí a necessidade de inventar, no primeiro, uma "mise-en-scène da incompreensão" e, no segundo, uma "mise-en-scène da culpa". (Mais sobre essa história da culpa no blog do Arthur Tuoto, que percebeu isso bem: http://arthur-t.blogspot.com/)
Em Código Desconhecido não basta, portanto, que os personagens sejam incapazes de se compreender. É preciso que a relação entre a câmera e os personagens e a relação entre o espectador e o filme reproduzam as relações entre os personagens.
Haneke limita-se, então, a observá-los em ações mais ou menos desconexas por mais de 60 dos seus 108 minutos. Até ali, aposta na experiência e recusa-se a dar ao espectador material suficiente para que de fato "pense" sobre o filme: arma as cenas em longuíssimos planos-seqüências (como que a exigir atenção e criar uma expectativa por compreensão, somente para frustrá-la em seguida), confunde (como na cena em que o personagem de Juliette Binoche "ensaia" uma cena do filme em que está trabalhando), sonega informação. Enfim, manipula descaradamente o espectador.
E expõe, assim, sua noção de cinema: uma linguagem que serve às teses, mas que só atinge todo seu potencial pedagógico se for devidamente manipulada, pois é uma linguagem que não é compreendida racionalmente. É preciso, portanto, saber tocar nas teclas certas.
Caché me parece uma radicalização dessa idéia. A operação de mimese também é mais sofisticada. Se a sua tese diz, em última instância, que a origem do conflito é a culpa, ela também poderia ser dita de outra forma: "a origem do conflito é o medo e a origem do medo é a culpa." Logo, para fazer os espectadores experimentarem a culpa – pequenos burgueses que são como o personagem de Daniel Auteuil –, basta fazê-los experimentar o medo. Daí a sucessão "inconclusa" de eventos que parecem estar ali para desnortear, causar estranheza – e, por fim, "ensinar".
A pedagogia nesse caso é dupla: Haneke ensina sobre cinema também. O que desencadeia o processo de desequilíbrio (ou de "aprendizado") do personagem de Auteuil são imagens – e elas ora estão no filme assistido pelos personagens, ora estão no filme de Haneke. Ele deixa sua teoria mais clara: se o cinema não deve preocupar-se em apelar ao racional é porque conversa melhor com o inconsciente. E assim como Binoche trabalha em um filme em Código Desconhecido, Auteuil trabalha em uma TV em Caché, oportunidade para desmascarar a manipulação das imagens.
Não vou discordar com quem acha que há algo de enfadonho – ou limitado – nesse "projeto pedagógico". Mas que ninguém acuse Haneke de desonestidade. Se as duas narrativas parecem vagas, é porque o centro do filme não está nelas – e ele não esconde isso: a estrutura é tão calculada e sólida quanto poderia ser.

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