quarta-feira, março 15, 2006


O novo naturalismo e as bolas na trave

Michael Winterbottom é pra mim o David Bowie do cinema. Não porque capriche no hair style, mas porque, assim como costumava fazer o seu compatriota, está sempre experimentando. É garantido: ano novo, filme novo de Winterbottom, certamente diferente do anterior. Só é pena ele estar menos para o Bowie dos anos 70 (que todo ano marcava um golaço) do que para o dos anos 90 (campeão das bolas na trave).

Entre filmes quase bons (Código 46, A Festa Nunca Termina) e quase ruins (9 Canções) está Neste Mundo (In This World, 2002), que a crítica européia adorou. Confesso que não entendo o conceito de realismo de alguns filmes contemporâneos. Acho que o desafio de um filme que busca o realismo é o de encontrar uma estrutura que permita que o real se revele de alguma forma, em algum momento e em algum lugar.

Os Dardenne, Kiarostami, Martel, Coutinho e até o último Van Sant dividem todos esse esforço bem bressoniano – cada um com seus caminhos e contradições particulares. É um trabalho ingrato, é verdade, encarar isso em tempos em que as imagens já perderam de vista seus referentes. Mas se o objetivo é essa “revelação” do real, não há saída, é preciso camelar.

E o que a trajetória do garoto afegão do Paquistão à Inglaterra, filmada como se parecesse um documentário, revela de documental de fato? Para Winterbottom, filmar com câmera da mão, sem iluminação adicional e com atores que espelham os personagens parece ser suficiente para que o realismo esteja garantido. Não parece incomodá-lo que sua edição alucinada não nos dê chance de observar de fato qualquer plano que extrapole a narrativa (aqui e ali esperando por um olhar menos apressado). Ou que os personagens (tão potencialmente cheios de verdade) só apareçam para fazer a ação andar. O que parece importar é a aparência das imagens (a "aparência" da aparência), não a imagem em si ou a maneira como elas se relacionam.

Afogando o seu objeto (e o que ele poderia revelar) em tecnicismos, o filme abandona a busca pelo real e parte em outra: a por parecer real. Estamos diante, então, do esforço corriqueiro por naturalismo. A diferença é que se trata de um novo naturalismo, que vem se consolidando há alguns anos e que reproduz o que conhecemos da linguagem do documentário, do jornalismo, das conquistas de linguagem do cinema dos anos 60 e da "espontaneidade" do digital – de forma virtuosa e sem espontaneidade. (E que nos faz aceitar a idéia de que uma câmera na mão é mais "realista" que uma câmera estática, por exemplo.)

Decidido isso, pouco importa o objeto a ser filmado. Não é preciso relacionar-se com ele, basta filmá-lo de terminada forma. Assim, igualam-se nesse virtuosismo objetos tão díspares quanto os refugiados de Nesse Mundo, os africanos de O Jardineiro Fiel, os personagens de um filme de Iñárritu ou o Matt Damon de Supremacia Bourne. Confesso que vou lamentar o fim do "teatro" de um modelo anterior de cinema naturalista. (Já disse "viva Clint Eastwood" hoje?) Mas lamento mais que todos esses filmes tenham gerado discussão por sua “pegada realista”. Neste Mundo levou o Urso de Ouro em Berlim, em 2002. Pra mim bateu na trave outra vez.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Olha, não se consigo separar o contúdo da imagem da aparência dela. Sempre sinto cinema como apar~encia, mesmo em Roma, citta aprta. Mas é besteira, entendi e concordo com o que diz. E não sei se o bunda de inverno acerta a trave - tá mais para a cabeça do bandeirinha. Ah, sim, o Clint é o meu pastor e nada me faltará.
Nikola
ps: credo, trocadilho infame! eu deveria ser castigado por Milosevic

7:30 PM  
Blogger paralaxe said...

Sim, claro, é sempre aparência. (Apesar de eu achar que às vezes pode não ser só isso.) O que eu quis dizer, como traduziu bem um amigo, é que o que importa nesse caso é mais a "imagem da imagem" do que a imagem em si.

Ele poderia ter filmado o mesmo roteiro no Deserto do Atacama com atores pernambucanos que falam árabe que o filme ainda seria o mesmo.

8:29 AM  
Blogger paralaxe said...

Mas "conteúdo" não era uma boa palavra mesmo, nesse caso. Tirei até.

8:36 AM  
Anonymous Anônimo said...

Sim, sim, sim, extatamente.
Nikola

7:14 PM  
Anonymous Anônimo said...

olha, sei que isso tem a ver com um outro post, sobre o last days. mas é que eu tava pensando, que isso tudo que voce colocou ali sobre o filme é interessante demais. então a pergunta é: onde voce conseguiu o filme, porque eu to tentando consegui-lo ha algum tempo e nada. voce tem cópia?
se tiver me escreve, ok?
murilohauser@gmail.com

valeu, abraço
e, bem, ótimo blog

murilo

10:17 AM  

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