sábado, janeiro 21, 2006


Aos puros de coração (1)

Desconfio do humanismo de certos filmes. Assisti recentemente a dois, premiados pelo tom humanista, em que ele se manifesta de forma curiosa.

Falo de O Cachorro (El Perro, 2004), de Carlos Sorin, e seu simpático personagem principal, Juan Villegas. Morador da Patagônia, o sujeito está em uma situação miserável, mas segue solícito a ajudar o próximo com um sorriso no rosto. Ganha um cachorro de raça, que passa a render-lhe algum dinheiro. O cachorro, porém, mostra-se “ouro de tolo”. O homem não o abandona, mantém a boa atitude e, no final, a esperança reaparece.

O filme está mais próximo do realismo já um pouco inviável dos primeiros De Sica (com sua simbiose atores/personagens) do que do novo realismo dos irmãos Dardenne (com sua câmera que provoca e é provocada por seus atores/personagens). Mas isso não é problema: estão ali todos os elementos que compõe uma mise-en-scène “humanista”. Não haveria do que reclamar.

O problema está na forma como o tema se desenvolve. A trajetória de Villegas esconde uma moral: a de que o homem puro de coração terá o seu sofrimento recompensado. Assim como em Histórias Mínimas, seu filme anterior, Sorin parece dizer o tempo todo: “Esse povo é sofrido, mas permanece puro, bondoso.” A frase na capa do DVD, que reproduz uma crítica da revista Época, diz tudo: “O Cachorro mostra que a bondade do povo resiste à penúria do país.” Subdesenvolvidos, mas com bom coração. E é por permanecerem assim, diz Sorin, que vão superar tudo.

Bem, se não estou errado, esse apelo à “razão do coração” é a base do melodrama clássico. Em especial aquele de Frank Capra nos anos 30 e sua curiosa visão da pobreza (bondosa, infantil e incapaz de agir). É também a de Walter Salles em Diários de Motocicleta. Há quem diga que Salles é um humanista, mas não sei de ninguém que (ainda) diga isso de Capra. Assim como a Argentina hoje, os EUA passavam por dificuldades nos anos 30. Os filmes de Capra são geniais, mas sua visão era populista, paternalista.

Ok, não há, em O Cachorro, um “grande pai” que salva os pobres, como há nos filmes do americano (e no de Salles). E nem acho que o filme seja ideológico. Mas, nesse ponto, já concluímos que a visão de Sorin é, na melhor das hipóteses, ingênua e, na pior, quase demagoga.