sábado, janeiro 21, 2006


Aos puros de coração (2)

Sei que o filme costuma gerar reações apaixonadas, então aviso logo: gosto muito, sim, de O Homem Sem Passado (Mies vailla menneisyyttä, 2002), de Aki Kaurismäki, que só calhei de ver com atenção agora. Mas também desconfio do que há de humano nele – ou pelo menos do que a crítica identificou como humano no filme.

A fábula do homem de classe média que perde a memória e encontra a felicidade entre os pobres, fora da vida institucional, deu margem a muitas leituras socializantes. Falou-se sobre a sociedade que nos aprisiona, sobre as dificuldades das pessoas que vivem sem documentos. É certo que a história favorece essa visão romantizada da vida à margem. Mas já sabemos que se o humanismo estiver aí, estamos com problemas.

Kaurismäki parece saber também. Tanto que evita a catástrofe de contar o filme de forma naturalista – ou mesmo realista. Faz o caminho inverso e estiliza tudo. Ele pode até negar que goste de fazer pastiches de gênero, mas em palavra de diretor não se confia. Aqui, a fotografia e a trilha sonora fazem a festa: misturam melodrama clássico, filme noir, até o terror clássico (na cena em que o personagem “volta” à vida), em um conjunto rigoroso, mas cheio de referências. O turn of the screw final está na direção dos atores, que dizem suas falas como se estivessem em um filme do Bresson.

O resultado é um universo quase patético, que ri da própria tentativa de manter a dignidade. Daí que discordo de quem diz que o filme desdenha do mundo institucional. O ridículo está em repetir uma estrutura institucional em um universo precário. O banco não tem dinheiro, a delegacia não tem quem prender. E o que há de humano é a consciência da precariedade, a auto-ironia e a readaptação do conceito de dignidade, nessa ordem – que está em cada gesto da personagem de Kati Outinen, premiada como Melhor Atriz em Cannes, em 2002.

Me pergunto se isso consegue afastar o filme daquela visão mais romântica da pobreza – que de alguma forma está lá também. Espero que sim.