segunda-feira, maio 15, 2006




Ou o rei ou a rainha

Duas horas depois do primeiro plano de Reis e Rainha (Rois et Reine, 2004), Ismaël Vuillard, um músico francês com uma percepção bastante particular da vida, nos conduz, sem motivo aparente, à mercearia em que seu pai trabalha, em algum lugar de Paris. Se até ali já nutria por ele certa gratidão por ter tornado mais agradáveis os 120 minutos anteriores, foi nessa hora que joguei a toalha: se o resto do filme de Desplechin fosse despretensioso e generoso como nessa cena em que Abel Vuillard desarma os três garotos que tentam assaltar sua mercearia, ele seria inesquecível.

Esse perfeito slice of life – espontâneo, sem explicação ou conexão com qualquer cena anterior ou posterior – faz muito bem a esse filme que parece querer construir-se sobre uma certa incapacidade de “domar” a vida. Há outros momentos parecidos: as cenas de Ismaël em família, suas conversas com Catherine Deneuve e o diálogo final com o garoto Elias são todos “pequenas bolhas” perdidas no tempo – que é onde vivem as mulheres, segundo Ismaël – que revelam, naquilo escondem, o que há de mais interessante em seus personagens. Em resumo: quando Desplechin arma sua mise-en-scène a partir de Ismaël, o personagem smaller than life, e alinha-se com ele, o filme ganha.

Mas ainda há Nora. E Desplechin parece gostar de Nora, o personagem que luta por sentido – que se esforça pra ser larger than life – e que pode, assim, dar-se o luxo de nos falar em off, amarrando o início e o final do filme. Ao oscilar entre ela e Ismaël, o filme perde: indeciso entre atirar-se à incapacidade de dar sentido ao seu filme e a vontade de fazê-lo, Desplechin inventa uma mise-en-scène em cima do muro. Uma estrutura que não sabe bem se oculta ou se explica, se observa ou se narra, se intui ou se raciocina. Nesse contexto, as opções de direção se enfraquecem: sem dizer muito a que vieram, as câmeras na mão e os jump cuts parecem, muitas vezes, forçar uma falta de sentido que não existe.

Não sei se é um mal comum a todo o cinema francês recente, mas De Tanto Bater Meu Coração Parou (De Battre Mon Coeur S’est Arrêté, 2005), que bateu A Criança e Caché no César desse ano, me deu a mesma impressão. Um filme indeciso entre a lucidez de seu roteiro e a falta de lucidez de seu personagem – e que reflete essa indecisão na sua linguagem. Cada vez mais penso que um diretor que quer falar da vida tem que escolher entre as duas coisas: ou bate no peito e banca sua capacidade de “contar” alguma coisa ou assume que não pode fazê-lo. O meio termo só leva, na melhor hipótese, a bons filmes frágeis – em que suas fragilidades, como já escrevi aqui, viram sua única verdade.