domingo, maio 07, 2006

















Três suecos, um francês e aquela argentina

Terminei de ver a “trilogia do silêncio” (ou “da fé”), do Bergman, e estou espantado em como todo o cinema da Lucrecia Martel (de novo ela) parece construído em a partir desses três filmes. Ela já tinha dito por aí o quanto gosta do O Silêncio, mas eu não esperava encontrar tantas relações com os outros filmes também.

O ponto de partida de todos eles é o mesmo: personagens largados a uma existência sem muito sentido à espera de uma “revelação” que não vem. Espaços e personagens se aproximam – a casa da ilha de Através de um Espelho e o hotel de O Silêncio conversam com a casa no meio mato de O Pântano e o hotel de A Menina Santa. Já a garota de A Menina Santa, que acredita que deve se oferecer ao homem mais velho, dialoga com a personagem de Harriet Andersson de Através de um Espelho, que ouve vozes que dizem que ela deve se oferecer ao irmão.

É uma figura chave para os dois diretores: já que a revelação que não acontece, ela vira uma criação da personagem, que passa a viver em um estado esquizofrênico, incapaz de compreender a realidade com lucidez. Em um grau menor, é um estado comum a outros personagens de Martel. (Penso também em Momi, a menina de O Pântano que agradece a Deus por lhe dar a criada Isabel.)

No mais, os personagens da diretora argentina estão mais próximos dos de O Silêncio. Nos dois primeiros filmes da trilogia de Bergman, o conflito entre a crença e a descrença de que a revelação pode acontecer é o que move o drama. Em O Silêncio, esse conflito não existe mais: quase que despidos de uma dimensão psicológica, os personagens já estão resignados à sua existência “silenciosa”. Limitam-se a existir: dormem, comem, andam, fumam – um pouco como os de O Pântano.

Há uma diferença, porém, no lugar onde Bergman e Martel se colocam. Uma diferença de 40 anos, eu diria. Bergman é dos que ainda podia contar uma história de algum lugar “acima” dela sem grandes culpas. Martel já não tem esse privilégio: sua lucidez não é muito maior do que a de seus personagens. No caso dela, porém, a desvantagem conta a favor. Já escrevi várias vezes que a maneira como ela incorpora à estrutura do filme essa incapacidade de entender a realidade faz com que o real acabe se revelando. Resumindo: pra Bergman, a questão da revelação é tema (pelo menos nos dois primeiros filmes.) Pra Martel, vira linguagem.

Isso a aproxima mais de Bresson – o “cineasta da revelação” – do que do sueco: apesar de não acreditar na revelação, ela acontece à sua revelia. Bergman não deixa de dialogar com Bresson também. Em Através de um Espelho (Såsom i en spegel,1961), a personagem que pensava ver Deus entende que vê, na verdade, uma aranha. Isso faz com que uma realidade difícil de suportar “se revele” ao irmão, como ele mesmo diz. Mas a revelação não é lá muito divina: na cena final, o rapaz conclui, com o pai, que estão à mercê um dos outros.

Já em Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1962) o padre desiste de esperar pela voz do Deus que está “em silêncio”, para compreender, no fim, que deve, como um personagem bressoniano, reaproximar-se dele mesmo assim. Bergman empresta um pouco a mise-en-scène de Diário de um Padre no início, quando o personagem ainda não abandonou a sua fé, e no final do filme, quando ele a retoma. Mas ele a empresta em um procedimento quase pós-modernista: o que já conhecemos daquela estrutura ajuda Bergman a nos mostrar o significado da sua história. (Não me parece tão diferente de um pastiche de gênero).

Não sei se O Silêncio (Tystnaden, 1963) é uma tentativa de incorporar à estrutura do filme essa busca pela revelação – e buscá-la no âmbito da imagem também. (Bergman me parece acreditar demais no teatro para ficar brigando com a linguagem nesse nível.) Mas como escrevi no post aí embaixo, tinha achado o filme bem bressoniano.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Sou um péssimo conhecedor de Bergman. Não vi a trilogia, infelizmente.

Ozu rocks!
Nikola

9:28 PM  

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