domingo, agosto 13, 2006
















Árido movie(s)

"Medo. Na Europa, vivemos em um espaço confinado e isso condiciona a nossa cabeça. Nos EUA, há tanto espaço que o choque de descobrir isso, para um europeu, cria uma infinidade de sentimentos surpreendentes."
Bruno Dumont, sobre o que sentiu ao descobrir os desertos americanos

O que Zabriskie Point (1970), Paris, Texas (1984) e Twentynine Palms (2003) têm em comum, além serem obviamente olhares europeus sobre os Estados Unidos, é o fato de que emprestam (e reconstroem) a paisagem da América de forma mais ou menos parecida para falar de certos "estados das coisas", pra usar uma expressão bem wenderiana. E de que, assim, cada um deles acaba funcionando como uma espécie de resposta aos projetos e angústias estéticas dos anteriores.

Me interessa menos, portanto, tentar entender o que os filmes podem dizer de específico sobre os Estados Unidos – ou mesmo me aprofundar em questões narrativas ou dramáticas – e mais pensar em como são feitas essas (re)construções de imagem e o que elas podem, sozinhas, indicar sobre esses "estados".

O fato de a "história oficial" do cinema não guardar um lugar lá muito honrado para Zabriskie Point é sinal de que as polêmicas políticas que envolveram a produção talvez tenham impedido a crítica de ver essa dimensão formalista do filme – que, ironicamente, é a essência dos trabalhos anteriores de Antonioni.

É certo que formalmente ele não é um Antonioni "clássico" (ou um Antonioni dos anos 60, pra dizer melhor). Em vez da unidade formal usual, em Zabriskie variam os registros: causam estranhamento, colocados lado a lado, o naturalismo extremo das cenas de protestos estudantis da primeira parte, o abrupto retorno de algo do esteticismo habitual do diretor na segunda parte – em que usa a paisagem desértica do Death Valley como fazia com seus cenários italianos – e o grafismo das explosões finais.

Por outro lado, pensado assim, em três momentos, Zabriskie funciona como uma espécie de filme-síntese da obra do diretor – e da evolução de sua concepção de imagem. Em sua primeira fase, Antonioni foi um dos fundadores da estética do neorealismo – e de sua crença em certo poder ontológico da imagem. Mas foi ele também que, em um segundo momento (depois de Rossellini ter dado o passo inicial com Viagem à Itália), entendeu que a verdade de um mundo cada vez mais complexo não estava mais na superfície das coisas – e que essa estrutura, portanto, já não dava conta da realidade. O "esteticismo delirante" que Pasolini viu em seus filmes dos anos 60, em que espaços e personagens parecem alheios uns aos outros, foi a resposta formal de Antonioni a esse novo momento – e um dos atestados de óbito daquela ontologia.

Em Zabriskie, essa transição está figurada na mudança da mise-en-scène, mas também na construção dos espaços. Se a matéria-prima que Antonioni tem compor suas imagens é a paisagem americana, então é o Death Valley a melhor tradução para esse momento de abstração crescente. Nesse contexto, as explosões finais do filme ganham uma outra dimensão: se a realidade é tão complexa que força a imagem à abstração, no limite dessa abstração, resta a ela desintegrar-se – explodir.

As últimas cenas Zabriskie Point são, portanto, o epílogo de todo o cinema de Antonioni – e também de certo modo a sua morte. De resto, são imagens que poderiam ser interpretadas como a "morte" de muitas outras coisas – de um projeto modernista para o cinema, por exemplo. Sem querer fazer especulações sociológicas demais, acredito que elas marcam, no âmbito do cinema, uma espécie de "morte do sentido" – que é o que me interessa para seguir em frente.















Wenders começa, em 84, onde Antonioni parou – ou um segundo antes das explosões de Zabriskie. A "morte do cinema" é um assunto recorrente na obra do alemão anterior a Paris, Texas, evidentemente, mas esse filme é mais sobre o seu renascimento: trata-se ali de tentar juntar os cacos, refazer os laços, fazer ressurgir o sentido. Novamente a paisagem mítica da América é utilizada como símbolo. (Nas palavras de Sam Shepard a Wenders: "Você acha tudo que você quer no Texas. É um pouco como a miniatura dos Estados Unidos".) Mas se Antonioni vai da realidade da cidade à abstração do deserto, Wenders começa perdido no mito e vai, aos poucos, "remontando" a realidade.

É um projeto pra lá de ambicioso esse de querer devolver o sentido à imagem em plenos anos 80. Wenders não se intimida – o diretor disse várias vezes quis construir seu olhar sobre a América sem modelo ("sem Walker Evans nem Edward Hopper"), mas já desconfiava que não sairia ileso sem referências ao cinema: Harry Dean Stanton segue até o fim como um John Wayne que, em vez de ter que devolver a sobrinha perdida à família, tem que tirar o cinema do confinamento do peep-show e devolvê-lo ao mundo. De qualquer maneira, era um projeto que precisaria ser verificado com o tempo.

É curioso como o próprio Wenders se encarregaria de prová-lo inviável: ao contrário de em Paris, Texas, em seu recente Estrela Solitária (Don’t Come Knocking, 2005) toda a imagem é construída a partir de "modelos" – de Hopper, Ford e do próprio Paris, Texas. O cinema está preso ao mito, parece dizer o filme: o John Wayne de Shepard volta algemado ao set para cumprir seu papel, enquanto resta aos seus filhos desajustados debater-se com essa paisagem anacrônica. Caberia aqui, como em quase todos os outros casos, também uma análise menos estética e mais política do filme. Mas sigo no formalismo.

Um pouco como em Estrela, o espaço Twentynine Palms também é todo mito. Mas também um pouco como em Zabriskie, ele é todo abstração. O que remete àquele início de Paris, Texas, em que o deserto tinha essas duas conotações. A diferença é que aqui não há progressão – nem em busca do sentido, nem rumo à explosão. A situação é definitiva: a natureza da imagem é imutável e a reintegração dos personagens a um espaço que lhes seja orgânico já não pode nem mesmo ser imaginado.

Nesse espaço estático, o único movimento é o do carro do casal de personagens, que passeia sem rumo pela paisagem abstrata – como uma Nastassja Kinski e um Harry Dean Stanton que tivessem decidido voltado ao deserto, à procura daquela Paris no meio do Texas, mas que no meio do caminho tivessem esquecido o objetivo da viagem.

É do contraponto entre o movimento do carro e o vazio do espaço – os dois em completo anacronismo – que Dumont encontra o seu ideal formal para seguir com suas investigações sobre a natureza humana, que é o seu interesse central. Se a interação com o espaço não faz mais sentido, resta mesmo nos debruçarmos sobre o homem – e observar como ele se debate com ele mesmo. Nesse contexto, quem vai desintegrar-se não é a imagem, mas os personagens – o perigo, aqui, é que nesse caso também seu diretor está fadado a desintegrar-se. E aí estamos falando da morte do cinema em um sentido mais amplo. Se Wenders parecia otimista demais em 84, Dumont é o seu perfeito oposto em 2003.














Menos pessimista, talvez, seja Gerry (2002), de Gus Van Sant. Não que ele retome o projeto de Paris, Texas, que certamente viu. Ao contrário: o filme é todo ele uma figuração – bastante explícita – desse "esgarçamento" da imagem que já estava implicado no cinema de Antonioni.

(Nesse caso nem cabe pensar na relação do diretor com o espaço dos EUA. Além de seu olhar não ser o de um estrangeiro, Van Sant busca paisagens para construir suas imagens tanto em seu país quanto na Argentina, por exemplo. Seu filme é mesmo sobre cultura, em um sentido mais amplo.)

Assim como em Zabriskie, em Gerry esse processo de perda de sentido também é figurado em três momentos. Mas se o ponto de partida de Antononi é o registro naturalista da cidade, Van Sant começa direto na abstração. De saída, já não há mais muito o que narrar – só resta um fiapo de sentido a ser perdido. Daí a necessidade do rigor na construção do espaço – árido no primeiro momento, desértico no segundo e de aparência quase extraterrena ao final. E se a imagem de Antonioni explode, a de Van Sant se esvai – e dá lugar a uma tela azul.

O que há de mais otimista aqui só se esclareceria nos filmes seguintes do diretor, Elefante e Last Days. A indicação de que resgatar o sentido é possível já está em Gerry, de fato: enquanto o personagem de Casey Affleck é consumido pelo espaço – como acontece Twentynine Palms –, o de Matt Damon consegue, no último instante, escapar e reconstruir esse espaço – como em Paris, Texas. Mas como se trata apenas de uma figuração, essa virada otimista, aqui, parece fora de contexto e causa certo estranhamento.

Van Sant trataria de deixar as coisas mais claras em seguida: se Gerry é a figuração, através do uso do espaço, dessa "morte do sentido", seria preciso, em Elefante, verificar a sua tese transferindo essa figuração exclusivamente para a mise-en-scène. Já disse em outro texto que Last Days me parece o momento em que a tese vira linguagem: se domar o mundo é impossível, é preciso achar um jeito de fazer com que ele se revele de alguma outra maneira. Estamos diante de um esforço formal – o que não é nenhuma novidade.