terça-feira, dezembro 12, 2006















The brown rosebud


Gostar ou não de The Brown Bunny (2003) talvez seja mesmo uma questão secundária. Já percebi que adoro falar mal do filme para quem é fã do Vincent Gallo, mas também nunca hesito em defendê-lo quando um de seus (muitos) detratores aparece. Cada vez mais acredito que é um daqueles grandes filmes tortos – que se contradizem, se destroem, carregam os mais graves dos defeitos, mas seguem mais interessantes do que quase tudo.

É certo que ainda me incomoda a revelação final de que a personagem da Chloë Sevigny está morta. Em princípio, achei que isso destruía toda a estrutura do filme – ou revelava uma estrutura bem menos interessante. Até ali, assisti ao filme certo de que ele era um exercício de mise-en-scène – um exercício não-narrativo. A impressão que eu tinha era de que tudo o que as imagens tinham de ambíguas era só uma figuração daquilo que o (diretor) Gallo acreditava que de fato havia de ambíguo no mundo e da sua incapacidade de compreendê-lo.

Saber que a personagem era uma projeção da cabeça do (personagem) Gallo transformou o filme em uma narrativa e implodiu a estrutura que parecia estar construindo até então. Quando se revelou a presença de um narrador, que conhecia a história e tinha as rédeas dela, toda a ambigüidade foi para o espaço, pensei. Porque tudo o que havia de ambíguo no filme não estava mais ali porque a realidade também era ambígua, mas somente porque havia um narrador que nos estava sonegando informação – e que compreendia mais do que a gente.

Era um modo de entender o cinema que estava em jogo: no primeiro caso, o filme parecia estar dizendo que narrar é impossível (e nisso ele se alinharia com o melhor do cinema contemporâneo, de Martel, de Gus Van Sant), que um filme se resume à sua mise-en-scène (ponto de vista, movimento, tempo e som – e só) e que é daí que pode nascer algo interessante. A partir da hora em que descobríamos que a personagem estava morta, porém, o filme passava a confiar na narrativa – e o Gallo-diretor nos dizia que se achava mais lúcido do que Gallo-personagem.

Não era simplesmente uma questão de o filme ter invertido minha expectativa inicial. (E é óbvio que não há nada de errado em filme narrativos.) O problema é que, retirado o que ele podia ter de interessante em termos de linguagem e entendido somente como uma narrativa, o filme ficava frágil demais. E ter perdido nos últimos cinco minutos a chance de ser o melhor dos filmes pra ser só um filme frágil era – e continua sendo –, pra mim, difícil de entender.

Por outro lado, passado o choque inicial, também não conseguia – e não consigo – aceitar que esses cinco minutos possam ser suficientes pra descartar tudo o que o filme tinha de bom até ali. Porque deixada de lado a tal revelação – que, no fim das contas, é uma questão de roteiro –, o filme continua sendo um triunfo de mise-en-scène. O que me faz pensar que, um pouco como o rosebud de Kane ou a neurose da personagem da Monica Vitti em Deserto Vermelho, a morte da Chloë (e o tal coelhinho) talvez também possa ser entendida como uma desculpa narrativa para permitir que o filme se organize sobre determinada estrutura.

É certo que essa desculpa era desnecessária. (E é certo também que entendê-la como tal pode ser só uma desculpa fácil para justificar um filme ruim.) Mas, de qualquer maneira, estamos falando de um cineasta americano. (E de qualquer maneira seu esforço de mise-en-scène está ali.) E talvez até o mais indie dos americanos precise, de alguma forma, prestar contas às estruturas tradicionais do cinema do seu país.