segunda-feira, outubro 08, 2007
















Linguagem sem crise

Vejo José Padilha no programa Roda Viva dizer que se opõe à tortura policial e que não se identifica com a parcela dos espectadores que aprova o comportamento do capitão Nascimento. Me pergunto por que isso não está expresso na linguagem de Tropa de Elite. (Me pergunto também por que os convidados do programa – que supostamente entendem do assunto – não o questionam sobre isso. Mas este é outro caso.)

O fato de o diretor filmar a tortura em primeiro plano não serve, por si só, como um recurso para marcar a sua oposição a ela – como ele diz acreditar, na entrevista. Colocá-la em destaque pode tanto servir para enfatizar o que ela tem de degradante quanto o que tem de excitante. A questão é como esses planos se articulam na linguagem do filme – e com o que, em última análise, ela vibra.

A mise-en-scène de Padilha não descola de Nascimento. O diretor reclamava de ter sido taxado de fascista em uma outra entrevista porque o filme tinha “câmera ágil e rock”. Não sei se o filme é fascista (e não acho que câmera ágil e rock definam uma mise-en-scène fascista), mas tanto a música tema do filme quanto a câmera vibram com a ação de seu protagonista – não o questionam.

Leon Cakoff pergunta por que Tarantino faz filmes de ação violentos e ninguém o chama de fascista (e diz que a crítica brasileira “não está acostumada a esse tipo de filme”). Padilha lembra que Scorsese também foi confundido com um fascista quando fez Taxi Driver. De fato, a mise-en-scène de Scorsese também vibra com a violência (a música tema de Os Infiltrados funciona da mesma forma que a de Tropa de Elite), mas o que faz de sua obra genial é que ela se sustenta sobre uma contradição.

Ao admitir, em suas escolhas de linguagem, que não consegue separar-se da violência que aparentemente quer trazer à luz (e em que estão imersos seus personagens), ele torna-se um duplo deles. Evidencia, assim, a sua condição de cineasta cuja arte não consegue escapar às estruturas de sua sociedade – por mais que se esforce para isso. É nesta contradição (ou nessa “falha”), que consegue fazer enxergar essas estruturas. O caso de Tarantino não é tão diferente. A questão é que ele já não faz disso uma “condição poética”, como Scorsese. Seu ponto de vista (histórico) já é bem mais cínico. Ele precisa rir das estruturas de seu cinema – e de sua sociedade.

Tropa de Elite não se encaixa em nenhum desses casos. Não incorpora, em sua linguagem nenhuma contradição. Nem a mise-en-scène nem o personagem de Padilha implodem em uma estrutura violenta da qual não conseguem escapar. O capitão Nascimento some segundos antes do fim do filme. E neste momento a câmera de Padilha cola a outro personagem, que acaba de aderir à lógica do que sumiu.

(Mesmo que o diretor estruturasse o seu filme como o de Scorsese, seria questionável, eu acho. Afinal, por mais que Tropa tenha dinheiro de um grande estúdio, não tem comprometimento com as estruturas do cinema e da sociedade americana. Teria que achar uma outra forma, acredito, de expressar esta contradição entre repudiar a violência e estar preso a ela.)

Padilha justifica um pouco suas escolhas dizendo que Nascimento é um personagem em crise. A contradição já estaria nele. No âmbito do roteiro, pode-se argumentar que não é a convicção em seus métodos que está abalada – e sim a sua vontade de ser o cara que aplica os tais métodos. Ainda assim, a questão essencial não é de roteiro. O de Tropa me parece representar bem todo o funcionamento do universo que pretende retratar. É à linguagem que Padilha escolheu estruturar seu filme que falta crise.

















Linguagem da crise

A crise – esta que falta a Tropa de Elite – é a base de O Ultimato Bourne (The Ultimatum Bourne, 2007). Quem já leu os outros textos deste blog sabe o quanto os filmes anteriores de Paul Greengrass (Vôo United 93 e A Supremacia Bourne) me irritaram. Para mim, os dois se estruturam sobre uma espécie de “mise-en-scène da histeria” – que procura tirar efeitos dramáticos de um naturalismo que emula de forma virtuosa a espontaneidade de uma mise-en-scène documental.

No caso de Vôo United 93, me incomoda ainda o fato de que ele tenha se aproveitado de uma tragédia recente para montar o seu carrossel histérico. Ali não há contradição – Greengrass adere sem restrições a uma certa celebração do desespero (em uma trama ficcional, a partir um atentado real, tanto faz.) Se alguém o chamasse de fascista, eu não engrossaria o coro, mas não seria o primeiro a defendê-lo.

A contradição de Ultimato aparece no roteiro – para quem, como José Padilha, sinta dificuldade de lê-la em sua linguagem –, mas está também em sua estrutura formal. Seu procedimento tem dois passos: como fazia Scorsese, Greengrass leva o seu método, em um primeiro momento, ao limite – seus movimentos de câmera estão mais frenéticos, seus cortes mais ágeis, seu naturalismo mais histérico, sua histeria mais explícita. O que não acontecia em seus outros filmes é que quando essa mise-en-scène aproxima-se de uma espécie de “ponto de síncope”, ele se afasta de seus personagens. (E – por que não – espanta-se com a situação deles.)

A cena síntese deste procedimento é aquela em que Bourne mata, em um prédio abandonado, um agente encarregado de assassiná-lo. A morte é antecedida por uma seqüência de ação extremamente violenta (e talvez o que a resuma melhor seja aquele plano impressionante – pelo seu virtuosismo e por sua crueza – em que Bourne invade o prédio por uma janela de vidro e a câmera o segue). Os poucos segundos em que o olhar de Greengrass se detém sobre o rosto do agente agonizante não servem só para ratificar esta violência. Ao suspender o tempo da ação para testemunhar seu ponto extremo, o plano também se contrapõe a ela. É neste detalhe que a contradição se infiltra no filme e que tudo muda.

A cena em que o personagem de Albert Finney explica a Bourne suas origens é a equivalente no âmbito do roteiro. Assim como Bourne escolheu que aquela seria a sua vida – e que, portanto, não tem do que reclamar – também a sociedade que produz filmes como os de Greengrass escolheu, de certa forma, que essa “mise-en-scène da histeria” seria a linguagem iria espelhá-la. Ultimato seria, assim, sintoma e diagnóstico. E Greengrass, o Scorsese do século 21 – no que acha uma nova configuração para as contradições de linguagem do nova-iorquino. (E de repente tudo aquilo que se diz do Michael Mann – que seus filmes “expressam as fissuras de nosso tempo” – e que eu sempre achei uma bobagem, poderiam fazer sentido para ele.) Um Scorsese meio esquemático, é verdade. Mas cada época tem o Scorsese que merece.

1 Comments:

Blogger Nikola Matevski said...

O Cakoff também veio com o papo de Tarantino blá, blá, blá? O Ratton, que filmou uma das coisas mais abjetas que vi no cinema esse ano (Batismo de Sangue), deu o mesmo argumento num texto do Globo... gente cega. Não quero gastar o meu teclado com Bourne e o Tropa não vi, mas o Padilha parece estar ficando esquizofrênico.

8:09 AM  

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