sábado, janeiro 12, 2008















Dois tempos

"No que diz respeito à disjunção, formalmente, isso sempre foi minha obsessão. Amo a variedade nos filmes, o inacabado, as mudanças de tom. Acho que já não podemos nos permitir fazer filmes que sigam uma nota só ou uma única linha. Para mim, a modernidade e a relação com o real passam pela reconstrução de elementos heterogêneos."
Christophe Honoré, em entrevista à Folha de S. Paulo

Uma senhora de uns 60 anos reclamava aos vizinhos de fila no fim da sessão em que revi Em Paris (Dans Paris, 2006), no HSBC Belas Artes: “Esse filme não tem história, não tem filosofia, não tem final, não tem nada!” Fiquei curioso: será que ela acha isso porque era fã de Truffaut e Godard ou porque não era? Bem, a parte de mim que gosta deles torce o nariz quando vê Louis Garrel passeando pela cidade com a mesma leveza do Belmondo em Acossado – ou do Léaud em Beijos Roubados.

Acho lindo isso que o Honoré diz sobre a variedade de tons – essa história de que é só pelo choque de registros que ele consegue se relacionar com o que chama de 'real'. É um princípio bem godardiano e ele não é o único que acredita nisso. Gus Van Sant, por exemplo, inverteu o método que vinha usando em seus últimos filmes – que caminhavam para um minimalismo formal cada vez mais rigoroso – e também resolveu testar certa variedade de registros em Paranoid Park (2007). Ele faz isso de um jeito bem diferente de Honoré, é verdade, mas usa um artifício que também foi explorado pelos autores dos anos 60, a subjetiva indireta livre.

A questão é que, para ele, este artifício é o ponto de partida – nunca um fim em si mesmo. Entendo que o Honoré precise tomar emprestado, de um jeito bem explícito, a estrutura dos filmes da nouvelle vague para justificar a sua liberdade de registros. Mas me incomoda que em certos momentos ele prefira elogiar as virtudes desta estrutura em vez de usá-la a seu favor. Quando isso acontece o filme vira só nostalgia formal e aquela idéia de “relacionar-se com o real” se transforma em teoria.

O 'real', no caso de Honoré, é sempre o real de seu universo ficcional, que fique claro. (E nesse ponto seus objetivos são mais truffautianos – ou até cassavetianos – do que godardianos.) É a verdade de seus personagens o que ele me parece buscar. E ela se revela em grande parte a partir dos movimentos de seus corpos no espaço, de sua interação com os outros corpos. O ato de colocar em cena – e vê-las 'manifestarem-se' fisicamente – é o que lhe interessa. (E por isso nenhuma situação em que os seus personagens interajam é para ele uma situação banal.) Talvez venha daí essa idéia de que seus filmes transmitem uma 'alegria de filmar'.














Quando Honoré se aproveita da liberdade de sua estrutura para ir em busca desta verdade, Em Paris vira um filme lindo. É ela que permite que ele filme um longuíssimo plano de Romain Duris tentando acompanhar a melodia de uma música (e quem disse que Truffaut ou Godard filmariam uma cena assim?) ou diálogos sublimes sem pretensões narrativas (como a conversa entre a mãe e o pai). Tudo o que Garrel faz fora do apartamento, porém, me parece só nostalgia. Não sei se é a ingenuidade sessentista demais do personagem, se são os momentos 'lúdicos' de comédia física, a velocidade acelerada de alguns planos. Mas nesses trechos tenho a impressão de que os personagens – e aquela 'fisicalidade' das cenas – somem e o foco passa a ser o elogio da forma.

Alguém pode dizer que esses momentos são necessários para que os outros tenham a força que têm. Que Honoré precisa apontar o dedo para a sua estrutura para ganhar o direito de usá-la livremente. E que exigir coerência de um filme que se sustenta sobre o choque de registros não faz nenhum sentido. Pode ser. Mas ainda acho que ele tiraria mais proveito dessa estrutura se não fizesse questão de chamar atenção para ela (e eu não vou nem começar a falar de Os Amantes Constantes). É o que ele mesmo provaria em Canções de Amor, em que declara o seu amor aos mestres de um jeito bem mais discreto. No mais, volto ao Paranoid Park.

É claro que a liberdade formal do filme de Van Sant é bem mais 'controlada' do que a de Em Paris. O diretor de Elefante elege alguns registros – os momentos em slow, os planos em Super 8, as cenas em que a câmera assume um ponto de vista explicitamente objetivo – e passa a variá-los com certa coerência. Mas ainda sim eles são sempre contrapostos de maneira que um jogue nova luz (e interesse) sobre os outros. Não se trata de um choque entre 'momentos-pretexto' e 'momentos privilegiados'. À parte tudo isso, o interessante é que a verdade que procura Van Sant com essa variação de registros não é a mesma que Honoré. O 'real' do americano não é diegético. O tempo que ele quer representar tem ‘t’ maiúsculo – e isso sim é um objetivo bem godardiano.